http://bkl-ensaiosabertos.blogspot.com/  

  http://bkl-estreia.blogspot.com/     

sábado, dezembro 30, 2006

Burgher King Lear de João Garcia Miguel
Casa d'Os Dias da Água, Lisboa.
de 28 de Novembro a 10 de Dezembro
Acreditando que à velhice po­dia poupar «os afazeres e os cuidados», Lear decidiu entre­gar o reino e o governo às suas três filhas, dividindo-o de acordo com o amor que es­tas fossem capazes de lhe demonstrar publica­mente. Esse momento em que o velho rei pergun­ta a Goneril, Regan e Cordélia, «Qual de vós (. .. ) me quer mais?», não sendo exactamente o primei­ro desta longa e complexa tragédia de William Shakespeare (datada de 1605), é aquele que mar­ca o fim do mundo de Rei Lear - «o primeiro dos homens modernos), segundo João Garcia Miguel, que dele se serviu para reflectir em Bur­gher King Lear sobre a loucura dos governantes», o «amor que imaginamos por um momento fugaz possuir» ou a «queda de um mundo e o surgimento de outro». Cordélia, até então a filha mais próxima, revelar-se-á a mais distante, inca­paz de responder sobre a medida do seu amor; enquanto as outras, mesmo com promessas e bajulações públicas, acabarão por lhe oferecer um destino com muitas surpresas.
Apesar de Rei Lear ter mais de vinte persona­gens e essa ser apenas uma das razões que dificul­tam a encenação desta tragédia cujo papel princi­pal é normalmente reservada a um velho actor ainda ágil fisicamente (Ruy de Carvalho foi O último Rei Lear português, em 1998, no Teatro D. Maria II), João Garcia Miguel criou um espectá­culo a partir deste texto apenas com dois intér­pretes e muitas cadeiras de ferro que os dois ma­nobram hábil e ruidosamente, criando persona­gens, desfazendo tempestades...
O facto de esta tragédia levantar muitas ques­tões na passagem à cena e de João Garcia Miguel nunca ter visto uma encenação dela não se revela­ram obstáculos mas incentivos. Como cúmplices o criador encontrou Anton Skrzypiciel, bailarino e actor australiano a viver em Portugal (que já trabalhou com Rui Horta, Patrícia Portela e o próprio João Garcia Miguel, com o qual partici­pou no Festival Fringe), e Miguel Borges, actor com percurso muito ligado aos Artistas Unidos.
Intérpretes de um texto representado em in­glês e português e reflectido num painel de legen­das literalmente transformado num dos elementos fulcrais do cenário, os dois actores são ainda, e do princípio ao fim do espectáculo, dois palha­ços incumbidos de nos apresentar mais de uma dezena de personagens (Garcia Miguel elimina al­gumas do texto original) - sendo que Anton.é apenas o Rei e Gloucester, e Miguel as restantes.

Estes hipotéticos homens «absurdos)} nos quais João Garcia Miguel quis ver uma espécie de Didi e Gogo, de À Espera de Godot (Beckett), dão forma a um texto «manipulado como se fosse um hambúrguer» - já que foi abreviado (em pro­vavelmente um terço da sua extensão) e remonta­do.
Esse tratamento (tipo fast-food" dado ao tex­to é, aliás, uma das razões para o nome Burgher aparecer no título deste espectáculo; já que a ou­tra passa pela possibilidade de entender Burgher como sinónima de cidadão em inglês e alemão arcaicos. A verdade é que se, por um lado, João Garcia Miguel começou por pensar nas questões de poder e de governo que estão associadas a esta personagem, por outro, encontrou na matéria que compõe este rei um homem comum.
Neste espectáculo - estreado no Espaço d'O Tempo, em Montemor-o-Novo, no fim-de-sema­na passado -, o rei não é inocentemente apre­sentado como o bobo, e praticamente colocado em situação de igualdade com o próprio Bobo da tragédia: uma personagem da qual Shakespeare fez jorrar a verdade sobre Lear e que tem gerado várias especulações, depois do dramaturgo o ter feito desaparecer sem razão aparente a meio da tragédia. No rei está também aquele que quer livrar-se das responsabilidades, que põe em dúvi­da, que avalia, ou quer avaliar até o intangível e que, exactamente, por isso, parece tão próximo da nossa contemporaneidade.

Cristina Margato
in Expresso, 25 de Novembro de 2006

'Burgher King Lear' em Lisboa

® Maria João Caetano

O encenador João Garcia Mi­guel pegou no texto de King Lear de Shakespeare, cortou-o, amas­sou-o, deu-lhe voltas. Tal como se faz à carne dos hamburgers. É por isso que o espectáculo que hoje se estreia na Casa dos Dias da Água, em Lisboa, se chama Burgher King Lear.

"Nunca tinha trabalhado um texto de Shakespeare, um autor por quem senti sempre alguma atracção e alguma repulsa", explica Garcia Miguel. "Levei al­gum tempo a conhecê-lo e também a encontrar os actores cer­tos para o representar." Os actores certos são o australiano Anton Skrzypiciel, que interpre­ta Lear e representa o texto ori­ginal, em inglês, e o português Miguel Borges, que interpreta dez personagens, incluindo as três filhas de Lear, numa tradu­ção livre para português.

Escolheram King Lear pelo desafio de "um texto irrepresen­tável" e pela "pertinência con­temporânea": o modo como fala do amor ("o amor sente-se, usa-se, abusa-se, dificilmente se po­de falar dele, não se pode intelec­tualizar senão desaparece", diz o encenador) e a dimensão política, relacionada com o poder Com a questão da herança, o que deixa­mos aos outros, o que recordam de nós"). O espectáculo fica em cena até 10 de Dezembro.

in DN 28 de Dezembro de 2006

sexta-feira, dezembro 01, 2006

UM COMENTÁRIO DE UMA ESPECTADORA

Não resisto a colocar aqui o comentário de uma espectadora amiga do dia da estreia. Obrigado Tela, obrigado a todos aqueles que nos têm ido ver.


João querido
Esta foi uma experiência teatral como poucas que já vivi na minha vida, e olhem que já lá se vão umas tantas...
tenho que agradecer a você, ao Anton, ao Miguel e mais toda a equipa por essa noitada de teatro como eu não tinha lembrança desde há muitos, mas mesmo muitos anos!!!
agora só falta mesmo conseguir que a tradução simultânea projectada seja também bilíngue! vai ainda tentar fazer isso ou desisitiu?
e já agora, mas uma coisa: a sua tradução do texto é primorosa, que é um adjectivo meio antiquado, mas que acho que ainda descreve bem certos conseguidos!
mais uma razão para se ter sempre o shakespeare presente também, para se perceber o primor contemporâneo do traduzido!
o rudy gostou muito também. ficou impressionado com a qualidade dos actores, assim como eu fiquei. você tem que dizer por nós ao Miguel e ao Anton o quanto o trabalho deles nos emocionou!
(....)
um grande beijo e obrigada por esta fantástica experiência teatral.
assim é que eu sempre gostei de brincar de teatro e me deu saudades dos meus tempos de atriz (actriz???) ... os tempos mais felizes da minha vida...
Tela

quarta-feira, novembro 15, 2006

O fim de um mundo 1

O Fim do Mundo

Devido à sensação de fragmentação que percebo e intuo sem no entanto conseguir viver completamente dentro dela, acho que posso voltar a considerar a hipótese de construir um espectáculo sobre este tema. RL é também sobre isso mesmo, sobre o amor que se parte, que se perde e que imaginamos um dia por um momento fugaz possuir e que depois a continuidade dos dias e das noites nos faz perceber que se nos escapou, por entre os dedos das mãos. Não há mais nada a que nos possamos agarrar, estamos continuamente a deslizar por um plano inclinado. O mundo que se desmorona e que se apresenta de novo a Lear fala deste sentimento de desadaptação que temos perante as nossas próprias ficções, as nossas criações mais pequenas e subtis onde incluímos os outros. Todos esses sentimentos que inventámos, para que servem num futuro próximo que se avizinha? Alguns deles parecem estar a deixar de fazer o seu papel, outros estão a tomar o seu lugar ou a reconstruírem-se. O curioso é esta necessidade de inventar o humano, e as suas implicações nas mais pequenas ligações que o homem faz entre si, os outros e a natureza que o constrói e destrói; o homem está inserido dentro de um jogo em que parece ser ele que domina todas as regras que o regem, mas na verdade a natureza ainda não se esqueceu dele; por isso morre-se e vive-se, quando esta sensação deixar de ter sentido ou lugar na nossa existência, passar-se-á a existir apenas; cada ser que nasce trás consigo uma nova possibilidade de começar tudo de novo, mas ao mesmo tempo significa uma continuação daquilo que foi feito, pensado e sentido anteriormente; é isso que nos apavora, que os outros que aí vêm não se lembrem mais de nós, mas isso é uma evidência, uma impossibilidade, um reflexo da nossa limitada memória também; foi isso que nós fizemos aos outros, é o que farão de nós.

Tomando esta pequena reflexão como ponto de parida quero pensar sobre as possibilidades que a estrutura desta peça pode encerrar dentro de si; há uma parte do trabalho que já está feito, basta apenas descobri-lo e dar-lhe de novo vida, assim como um filho que se faz já estava previamente concebido; as probabilidades de ver a luz do dia são no entanto reduzidas, segundo se diz.

Uma das coisas que gosto de fazer é pôr-me em desequilíbrio, jogar um efeito de ansiedade sobre o meu próprio existir; começar por um lado que rapidamente abandono para deixar que ele se transforme noutro caminho; quero mais uma vez aproveitar esta possibilidade para construir uma peça que me deixe perplexo e em conflito com a ordem das coisas do mundo; é para mim claro o sofrimento que este mecanismo encerra dentro de si, mas parece que não lhe consigo escapar. Por isso vou construir uma peça que misture várias coisas, entre as quais as minhas reflexões sobre o mundo onde vivo, as minhas memórias e as relações com os outros que vou encontrando neste caminho longo; a recorrência ao falar da morte e dos fins das coisas é um lugar habitual para mim e que encontro expresso neste texto de Shakespeare; talvez os textos contemporâneos de teatro não devam mais ser escritos como os textos antigos; talvez estejamos mais uma vez a precisar de novas formas como de novos sentimentos, de novas visões das nossas viagens no mundo. Para isso é preciso compreender as matrizes da nossa impossibilidade, é preciso compreender os momentos em que o fim de um caminho desemboca noutros caminhos, é preciso perceber quando andamos à volta e não saímos dos mesmos locais. Há sem dúvida muitas formas de perceber sem ser claro ainda o que percebemos ou o que deixámos de conseguir perceber. Este parece ser um desses momentos, em que é necessário invocar a inteligência de todos para que se possa dar mais espaço há inteligência de cada um de nós; é preciso uma grande dose de entrega e de sacrifício pessoal para estimular aqueles que se arriscam a pensar coisas contra as regras, contra a lógica inexorável da razão pura. Foi isso que aprendi com Strindberg e foi isso de que falei na peça A Entrega; em a História de Um Mentiroso abordei as questões relacionadas com a inexistência de um céu e de um inferno, de uma ideia terrível de que temos de encarar esta tensão que se estabelece entre o criador e o criado, da constância que as guerras interiores de sentimentos nos deixam indefesos perante nós próprios e perante as pulgas da natureza que nos destroem incessantemente. Em RL quero aproveitar essa tensão que se estabelece entre o individual e o colectivo e as suas formas de organização criativa; quero abordar a queda de um mundo e o surgimento de outro; quero abordar as formas de resistência encontrada pelos homens que não são possíveis de descrever por palavras, ao atingir de frente o núcleo das certezas de um mundo que se fecha constantemente sobre si mesmo e que se condenou algures no seu próprio caminho; quero falar de jogos, medos, solidão, estados limites e terminais, decomposição; quero falar da invenção do humano num homem velho.

Por isso esta ideia de se falar de coisas que remetam para o fim do mundo; para um fim de uma coisa, encetada de um modo voluntário, ainda que não completamente compreendida nem pressagiada.

Which of you shall we say doth love us most?


Notas para Lear


Após uma segunda investida ao texto de Lear e a uma série de leituras paralelas, sinto-me aparentemente mais confuso, pois tenho muita informação que necessito digerir. A questão de termos dois personagens, ou melhor dois actores é uma dificuldade que me faz recordar a construção de As Ondas. Também aí éramos dois actores para representar pelo menos seis ou sete personagens. Agora são dois para representar uma história que no original contem mais de vinte, sendo que os mais importantes são à volta de doze.

De modo que neste momento a primeira preocupação que me assalta é encontrar uma estratégia, um conceito para reduzir este texto à dimensão de um projecto teatral não perdendo a sua qualidade literária. Tenho algumas ideias para isto, mas ainda nenhuma delas se me apresenta como definitiva. A 1º solução passa por acrescentar a este texto uma outra história, que se relacione com o momento histórico que estamos a viver, considerando assim dar a Lear uma dimensão nitidamente simbólica e politica. Tem uma grande contrariedade este conceito pois dá a Lear um peso que não é aquele que tem no texto. A principal ideia deste texto, parece-me ser a reacção que o amor provoca. Ou seja, um pouco como Strindberg o que Shakespeare fala aqui é que o amor desencadeia uma forma de relacionamento com a realidade que é com frequência gerador de comportamentos limites que desencadeiam a destruição daqueles que amam com maior ardor ou furor. É óbvio que não existe apenas um só tema neste drama. Um outro tema no meu entender é a luta entre a natureza, entendida de muitas maneiras aqui e o homem enquanto construção. Ou seja é no fundo uma derivação da questão do amor mas existe uma ideia de natureza que vai desde o animal até à natureza dos deuses que nos confronta com uma outra ideia que é a de ser humano, uma noção que se constrói dentro de nós, dia a dia, ano a ano, século a século de combates diversos entre todos nós e cada um dentro de si.

Esta ideia de construção do humano é talvez o meu tema preferido, para esta peça, que se consubstancia de muitas formas neste drama. Isto implica-me e conduz-me a uma reescrita do texto, para o enquadrar perante a minha visão, do que neste momento me apetece falar. Existem vários elementos simbólicos que são muito relevantes para isso: uns deles são os mortos, ou seja a quantidade de pessoas que morrem nesta peça; outros são as referências à ideia de roda e de círculo que me parecem conter várias pregnâncias importantes; outra que é de todas a mais significativa são os olhos e a noção de olhar e de ver o que se vê ou o que se pensa e se quer ver: esta riqueza de formas de olhar, e a sua expressão de modos muito variados, é uma constante no texto e assinalei muitas vezes a sua referência.
A hipótese dois deste trabalho por agora, centra-se na existência de um narrador e de um rei; sendo que tanto o Rei, que penso ser o Anton, como o narrador, poderão desdobrar-se em outras personagens. Esta solução é muito rica de complexidades e de soluções, pois permite ter uma saída da narração e entrada na narrativa de Shakespeare que será muito clara. Mas também tem como problema a justaposição de textos e não deixa de impor uma comparação entre eles e uma necessidade de contar a história toda ou pelo menos quase toda. É interessante pela versatilidade de actuações que permite e pelo desafio a estes dois magníficos actores.

A terceira hipótese é um pouco mais rocambolesca e passa por ter uma espécie de quadro de mortos, de situar a peça num tempo de espectros de fantasmas, onde a veracidade dos factos e das consequências narrativas podem ser estendidas para uma forma mais elástica e menos condicionado. Nesta solução, que se apresenta com alguns riscos, principalmente para não se tornar numa forma de reducionismo da dimensão poética do texto e dos seus temas, encontro a ressonância mais forte às minhas intenções. Esta solução faz me recordar a peça de Kantor, que na realidade conheço muito mal, A Classe Morta; a sugestão surgiu-me por causa da introdução de bonecos que funcionem como espectros, como recordações de seres vivos; nessa peça Kantor usava uma série de manequins que mantinha sentados numa espécie de classe de aula, misturados com actores vivos, dando uma acentuado clima de passagem entre a vida e a morte.


Which of you shall we say doth love us most?
De qual de vocês poderemos dizer que me ama melhor?


João Garcia Miguel

Março 2006

quarta-feira, outubro 18, 2006

A Invenção do Humano


Estamos a cerca de um mês da estreia desta nova produção. o trabalho que realizámos a semana de 11 a 15 de Outubro deu para perceber a importância que para mim tem esta peça.
É a primeira vez que trabalho com o bardo e isso tem o encanto equivalente a ter descoberto todo um mundo novo.

Há uma magia nestes textos, nas suas palavras, nas suas imagens, nas emoções que despoletam, que nos faz sentir como se estivéssemos a inventarmo-nos.
É uma sensação dificilmente explicável por enquanto pelo menos.
Estamos um pouco inseguros, quanto ao resultado mas estamos a desenvolver um trabalho que nos ultrapassa em cada ensaio.

Abrimos aqui um novo espaço de comunicação, que vai dar conta da evolução

quarta-feira, setembro 27, 2006

Burgher* King Lear

























O rei está louco! O rei não sabe para onde nos leva! Cruéis tempos se avizinham! Houve um tempo em que o rei matava todos com a sua espada! Mas agora o rei não tem força para a levantar! O rei está velho! O rei vai morrer! O rei não quer morrer! Que o rei morra depressa! O rei partiu a sua coroa ao meio e abandonou o castelo! O rei está louco! O rei não sabe para onde vai! O rei não quer ser rei! Cruéis tempos se avizinham! O rei quer morrer!

The king is mad! The king knows not where he leads us! Cruel times are afoot! There was a time when the king would slay all! But now the king can’t even master up the strength to lift it his sword! The king is old! The king is going to die! May the king die soon! The king broke his crown in half and abandoned the castle! The king is mad! The king knows not where he’s going! The king does not want to be king! Cruel times are afoot! The king wants to die!

Traduzi e esquartejei o texto de Shakespeare criando uma versão bilingue para dois actores, um australiano e um português. Trabalhei ao mínimo o que me pareceu substancial: a história do pai e das suas três filhas! A história de um homem que por um acaso dos homens é rei; a história de um rei que se sente velho e quer voltar a ser homem! A história de um homem que pede às suas filhas que lhe digam qual delas o ama mais! Em troca da sua confissão dar-lhes-á um terço do seu reino.

I dissected Shakespeare’s text creating a version for two actors: an Australian and a Portuguese.
I kept untouched what I felt was most substantial: the story of the father and his 3 daughters! The story of a man who, by chance of chances, is king; the story of a king who feels old and wants to go back to being a man. The story of a man who asks his 3 daughters to tell him which one of them loves him the most luring them to answer with the promise of 1/3 of his kingdom.

Se as duas primeiras, movidas pela ambição, lhe oferecem uma definição canónica; a sua preferida não entra no jogo pois um tão cavado amor não é descritível. Do equívoco que tão pouco convencional resposta gera abre-se uma porta imensa, deixando sair incontroláveis forças ocultas, que enlouquecem e destroem tudo por onde passam.

If the first two, moved by ambition, offer him a sugary, over the top confession, his favourite daughter does not play the game, for such a deep love cannot be put into words. From the misunderstanding of such an unconventional answer a door is open letting out uncontrollable dark forces which madden and destroy everything they touch.

Realcei a luta pela sobrevivência e o carácter frágil dos personagens, perante essas forças que vêm de dentro de cada um deles; a luta trágica que se desenrola por dentro e por fora, que os conduz à cegueira e à loucura, acabando por se matarem uns aos outros, e por fim matarem-se a si próprios, como a única saída possível para apaziguar as forças destruidoras desencadeadas.

I focused on the character’s frailty when faced with those forces rising from within and their fight for survival. The tragic struggle taking place from the inside out leading them to blindness and madness and ultimately to killing each other and killing themselves as the only possible way to appease the destructive forces they unleashed.

Mais uma vez, aproveito para falar do tempo, aliás dos tempos, da transformação e da metamorfose; guardo para mim a imagem de um homem criança numa praia ao anoitecer que tenta lançar um papagaio vermelho e branco que cai repetidamente. Ao recolher o papagaio, o homem fica com um novelo de fio embaralhado nas mãos, que entre o desespero e a clarividência procura desembaraçar e estender no chão. Por vezes o fio parte-se e o homem procura atar as pontas quebradas. As suas mãos tremem de frio e medo, o fio vai-se enleando numa teia que arrasta consigo pedaços de plantas mortas, areia, agua, detritos, restos de papéis. O homem pela praia, primeiro de pé, depois dobrado, de gatas, rastejando, paralelamente ao mar, até desaparecer transformando-se numa neblina que cobre a areia e o mar até se desfazer no escuro da noite.

Once again I speak about time, or rather, about the times, about transformation and metamorphosis. I hope I find a path that may guide the audience, a path which allows us to meet again these extinct men from an era long gone and recognise what they left us as inheritance.

O encanto de trabalhar um texto destes, prende-se com o desafio, com a quantidade de ressonâncias que se despoletam, com a descoberta que se faz por nós mesmos. Espero encontrar um caminho que possa agora partilhar com o publico, um caminho que permita reencontramo-nos com estes homens extintos, saídos de uma época que não existe mais e reconhecer aquilo que nos deixaram em herança.

The change in the title has a double intention ironic and critical, for we manipulate and transform Shakespeare’s text as if it were a hamburger; at the same time we work the dimension of ordinary man and citizen which the king presents, the abandon of his responsibilities to rule and the relationship with his daughters. The piece ended up being a different being from that which it was bred from focusing on the contemporaneity of the text and the theme we initially wanted to work: the hazard and our passions.

A alteração do título tem uma dupla intenção irónica e crítica, porque manipulamos e transforma-mos o texto de Shakespeare como se fosse um hamburger; em simultâneo trabalhamos a dimensão de homem comum e cidadão, que o rei apresenta, o abandono das suas responsabilidades de governação e a relação com as suas filhas. A peça acabou por se tornar um ser diferente daquele a partir do qual foi gerado, acentuando a contemporaneidade do texto e a temática que entrecruza o acaso e as nossas paixões.

Lisboa, Setembro de 2006
Lisbon, September 2006
João Garcia Miguel

Credits:

Directed by: João Garcia Miguel
Translated and adapted by: João Garcia Miguel, based on King Lear by William Shakespeare
Cast: Anton Skrzypiciel e Miguel Borges
Set and Costumes: Ana Luena
Executive producer: Marta Vieira
Touring: CAMPAI vzw Bruno Heynderickx
Co-Production: Casa d’Os Dias da Água
Artistic Residence: Convento da Saudação em Montemor-o-Novo

João Garcia Miguel is an associated artist at O Espaço do Tempo and resident company at Casa D’Os Dias da Água.

Co-Production: JGM, O Espaço do Tempo e Casa d’os dias da água
Structure financed by: Ministério da Cultura, Instituto das Artes e
Fundação Calouste Gulbenkian

Lisboa, Setembro de 2006
João Garcia Miguel

*
Burgher in archaic English and German means citizen.
Burgher em inglês arcaico e em alemão, significa cidadão.