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quarta-feira, novembro 15, 2006

Which of you shall we say doth love us most?


Notas para Lear


Após uma segunda investida ao texto de Lear e a uma série de leituras paralelas, sinto-me aparentemente mais confuso, pois tenho muita informação que necessito digerir. A questão de termos dois personagens, ou melhor dois actores é uma dificuldade que me faz recordar a construção de As Ondas. Também aí éramos dois actores para representar pelo menos seis ou sete personagens. Agora são dois para representar uma história que no original contem mais de vinte, sendo que os mais importantes são à volta de doze.

De modo que neste momento a primeira preocupação que me assalta é encontrar uma estratégia, um conceito para reduzir este texto à dimensão de um projecto teatral não perdendo a sua qualidade literária. Tenho algumas ideias para isto, mas ainda nenhuma delas se me apresenta como definitiva. A 1º solução passa por acrescentar a este texto uma outra história, que se relacione com o momento histórico que estamos a viver, considerando assim dar a Lear uma dimensão nitidamente simbólica e politica. Tem uma grande contrariedade este conceito pois dá a Lear um peso que não é aquele que tem no texto. A principal ideia deste texto, parece-me ser a reacção que o amor provoca. Ou seja, um pouco como Strindberg o que Shakespeare fala aqui é que o amor desencadeia uma forma de relacionamento com a realidade que é com frequência gerador de comportamentos limites que desencadeiam a destruição daqueles que amam com maior ardor ou furor. É óbvio que não existe apenas um só tema neste drama. Um outro tema no meu entender é a luta entre a natureza, entendida de muitas maneiras aqui e o homem enquanto construção. Ou seja é no fundo uma derivação da questão do amor mas existe uma ideia de natureza que vai desde o animal até à natureza dos deuses que nos confronta com uma outra ideia que é a de ser humano, uma noção que se constrói dentro de nós, dia a dia, ano a ano, século a século de combates diversos entre todos nós e cada um dentro de si.

Esta ideia de construção do humano é talvez o meu tema preferido, para esta peça, que se consubstancia de muitas formas neste drama. Isto implica-me e conduz-me a uma reescrita do texto, para o enquadrar perante a minha visão, do que neste momento me apetece falar. Existem vários elementos simbólicos que são muito relevantes para isso: uns deles são os mortos, ou seja a quantidade de pessoas que morrem nesta peça; outros são as referências à ideia de roda e de círculo que me parecem conter várias pregnâncias importantes; outra que é de todas a mais significativa são os olhos e a noção de olhar e de ver o que se vê ou o que se pensa e se quer ver: esta riqueza de formas de olhar, e a sua expressão de modos muito variados, é uma constante no texto e assinalei muitas vezes a sua referência.
A hipótese dois deste trabalho por agora, centra-se na existência de um narrador e de um rei; sendo que tanto o Rei, que penso ser o Anton, como o narrador, poderão desdobrar-se em outras personagens. Esta solução é muito rica de complexidades e de soluções, pois permite ter uma saída da narração e entrada na narrativa de Shakespeare que será muito clara. Mas também tem como problema a justaposição de textos e não deixa de impor uma comparação entre eles e uma necessidade de contar a história toda ou pelo menos quase toda. É interessante pela versatilidade de actuações que permite e pelo desafio a estes dois magníficos actores.

A terceira hipótese é um pouco mais rocambolesca e passa por ter uma espécie de quadro de mortos, de situar a peça num tempo de espectros de fantasmas, onde a veracidade dos factos e das consequências narrativas podem ser estendidas para uma forma mais elástica e menos condicionado. Nesta solução, que se apresenta com alguns riscos, principalmente para não se tornar numa forma de reducionismo da dimensão poética do texto e dos seus temas, encontro a ressonância mais forte às minhas intenções. Esta solução faz me recordar a peça de Kantor, que na realidade conheço muito mal, A Classe Morta; a sugestão surgiu-me por causa da introdução de bonecos que funcionem como espectros, como recordações de seres vivos; nessa peça Kantor usava uma série de manequins que mantinha sentados numa espécie de classe de aula, misturados com actores vivos, dando uma acentuado clima de passagem entre a vida e a morte.


Which of you shall we say doth love us most?
De qual de vocês poderemos dizer que me ama melhor?


João Garcia Miguel

Março 2006