http://bkl-ensaiosabertos.blogspot.com/  

  http://bkl-estreia.blogspot.com/     

quarta-feira, novembro 15, 2006

O fim de um mundo 1

O Fim do Mundo

Devido à sensação de fragmentação que percebo e intuo sem no entanto conseguir viver completamente dentro dela, acho que posso voltar a considerar a hipótese de construir um espectáculo sobre este tema. RL é também sobre isso mesmo, sobre o amor que se parte, que se perde e que imaginamos um dia por um momento fugaz possuir e que depois a continuidade dos dias e das noites nos faz perceber que se nos escapou, por entre os dedos das mãos. Não há mais nada a que nos possamos agarrar, estamos continuamente a deslizar por um plano inclinado. O mundo que se desmorona e que se apresenta de novo a Lear fala deste sentimento de desadaptação que temos perante as nossas próprias ficções, as nossas criações mais pequenas e subtis onde incluímos os outros. Todos esses sentimentos que inventámos, para que servem num futuro próximo que se avizinha? Alguns deles parecem estar a deixar de fazer o seu papel, outros estão a tomar o seu lugar ou a reconstruírem-se. O curioso é esta necessidade de inventar o humano, e as suas implicações nas mais pequenas ligações que o homem faz entre si, os outros e a natureza que o constrói e destrói; o homem está inserido dentro de um jogo em que parece ser ele que domina todas as regras que o regem, mas na verdade a natureza ainda não se esqueceu dele; por isso morre-se e vive-se, quando esta sensação deixar de ter sentido ou lugar na nossa existência, passar-se-á a existir apenas; cada ser que nasce trás consigo uma nova possibilidade de começar tudo de novo, mas ao mesmo tempo significa uma continuação daquilo que foi feito, pensado e sentido anteriormente; é isso que nos apavora, que os outros que aí vêm não se lembrem mais de nós, mas isso é uma evidência, uma impossibilidade, um reflexo da nossa limitada memória também; foi isso que nós fizemos aos outros, é o que farão de nós.

Tomando esta pequena reflexão como ponto de parida quero pensar sobre as possibilidades que a estrutura desta peça pode encerrar dentro de si; há uma parte do trabalho que já está feito, basta apenas descobri-lo e dar-lhe de novo vida, assim como um filho que se faz já estava previamente concebido; as probabilidades de ver a luz do dia são no entanto reduzidas, segundo se diz.

Uma das coisas que gosto de fazer é pôr-me em desequilíbrio, jogar um efeito de ansiedade sobre o meu próprio existir; começar por um lado que rapidamente abandono para deixar que ele se transforme noutro caminho; quero mais uma vez aproveitar esta possibilidade para construir uma peça que me deixe perplexo e em conflito com a ordem das coisas do mundo; é para mim claro o sofrimento que este mecanismo encerra dentro de si, mas parece que não lhe consigo escapar. Por isso vou construir uma peça que misture várias coisas, entre as quais as minhas reflexões sobre o mundo onde vivo, as minhas memórias e as relações com os outros que vou encontrando neste caminho longo; a recorrência ao falar da morte e dos fins das coisas é um lugar habitual para mim e que encontro expresso neste texto de Shakespeare; talvez os textos contemporâneos de teatro não devam mais ser escritos como os textos antigos; talvez estejamos mais uma vez a precisar de novas formas como de novos sentimentos, de novas visões das nossas viagens no mundo. Para isso é preciso compreender as matrizes da nossa impossibilidade, é preciso compreender os momentos em que o fim de um caminho desemboca noutros caminhos, é preciso perceber quando andamos à volta e não saímos dos mesmos locais. Há sem dúvida muitas formas de perceber sem ser claro ainda o que percebemos ou o que deixámos de conseguir perceber. Este parece ser um desses momentos, em que é necessário invocar a inteligência de todos para que se possa dar mais espaço há inteligência de cada um de nós; é preciso uma grande dose de entrega e de sacrifício pessoal para estimular aqueles que se arriscam a pensar coisas contra as regras, contra a lógica inexorável da razão pura. Foi isso que aprendi com Strindberg e foi isso de que falei na peça A Entrega; em a História de Um Mentiroso abordei as questões relacionadas com a inexistência de um céu e de um inferno, de uma ideia terrível de que temos de encarar esta tensão que se estabelece entre o criador e o criado, da constância que as guerras interiores de sentimentos nos deixam indefesos perante nós próprios e perante as pulgas da natureza que nos destroem incessantemente. Em RL quero aproveitar essa tensão que se estabelece entre o individual e o colectivo e as suas formas de organização criativa; quero abordar a queda de um mundo e o surgimento de outro; quero abordar as formas de resistência encontrada pelos homens que não são possíveis de descrever por palavras, ao atingir de frente o núcleo das certezas de um mundo que se fecha constantemente sobre si mesmo e que se condenou algures no seu próprio caminho; quero falar de jogos, medos, solidão, estados limites e terminais, decomposição; quero falar da invenção do humano num homem velho.

Por isso esta ideia de se falar de coisas que remetam para o fim do mundo; para um fim de uma coisa, encetada de um modo voluntário, ainda que não completamente compreendida nem pressagiada.