Casa d'Os Dias da Água, Lisboa.
de 28 de Novembro a 10 de Dezembro
Acreditando que à velhice podia poupar «os afazeres e os cuidados», Lear decidiu entregar o reino e o governo às suas três filhas, dividindo-o de acordo com o amor que estas fossem capazes de lhe demonstrar publicamente. Esse momento em que o velho rei pergunta a Goneril, Regan e Cordélia, «Qual de vós (. .. ) me quer mais?», não sendo exactamente o primeiro desta longa e complexa tragédia de William Shakespeare (datada de 1605), é aquele que marca o fim do mundo de Rei Lear - «o primeiro dos homens modernos), segundo João Garcia Miguel, que dele se serviu para reflectir em Burgher King Lear sobre a loucura dos governantes», o «amor que imaginamos por um momento fugaz possuir» ou a «queda de um mundo e o surgimento de outro». Cordélia, até então a filha mais próxima, revelar-se-á a mais distante, incapaz de responder sobre a medida do seu amor; enquanto as outras, mesmo com promessas e bajulações públicas, acabarão por lhe oferecer um destino com muitas surpresas.
Apesar de Rei Lear ter mais de vinte personagens e essa ser apenas uma das razões que dificultam a encenação desta tragédia cujo papel principal é normalmente reservada a um velho actor ainda ágil fisicamente (Ruy de Carvalho foi O último Rei Lear português, em 1998, no Teatro D. Maria II), João Garcia Miguel criou um espectáculo a partir deste texto apenas com dois intérpretes e muitas cadeiras de ferro que os dois manobram hábil e ruidosamente, criando personagens, desfazendo tempestades...
O facto de esta tragédia levantar muitas questões na passagem à cena e de João Garcia Miguel nunca ter visto uma encenação dela não se revelaram obstáculos mas incentivos. Como cúmplices o criador encontrou Anton Skrzypiciel, bailarino e actor australiano a viver em Portugal (que já trabalhou com Rui Horta, Patrícia Portela e o próprio João Garcia Miguel, com o qual participou no Festival Fringe), e Miguel Borges, actor com percurso muito ligado aos Artistas Unidos.
Intérpretes de um texto representado em inglês e português e reflectido num painel de legendas literalmente transformado num dos elementos fulcrais do cenário, os dois actores são ainda, e do princípio ao fim do espectáculo, dois palhaços incumbidos de nos apresentar mais de uma dezena de personagens (Garcia Miguel elimina algumas do texto original) - sendo que Anton.é apenas o Rei e Gloucester, e Miguel as restantes.
Estes hipotéticos homens «absurdos)} nos quais João Garcia Miguel quis ver uma espécie de Didi e Gogo, de À Espera de Godot (Beckett), dão forma a um texto «manipulado como se fosse um hambúrguer» - já que foi abreviado (em provavelmente um terço da sua extensão) e remontado.
Esse tratamento (tipo fast-food" dado ao texto é, aliás, uma das razões para o nome Burgher aparecer no título deste espectáculo; já que a outra passa pela possibilidade de entender Burgher como sinónima de cidadão em inglês e alemão arcaicos. A verdade é que se, por um lado, João Garcia Miguel começou por pensar nas questões de poder e de governo que estão associadas a esta personagem, por outro, encontrou na matéria que compõe este rei um homem comum.
Neste espectáculo - estreado no Espaço d'O Tempo, em Montemor-o-Novo, no fim-de-semana passado -, o rei não é inocentemente apresentado como o bobo, e praticamente colocado em situação de igualdade com o próprio Bobo da tragédia: uma personagem da qual Shakespeare fez jorrar a verdade sobre Lear e que tem gerado várias especulações, depois do dramaturgo o ter feito desaparecer sem razão aparente a meio da tragédia. No rei está também aquele que quer livrar-se das responsabilidades, que põe em dúvida, que avalia, ou quer avaliar até o intangível e que, exactamente, por isso, parece tão próximo da nossa contemporaneidade.
Cristina Margato
in Expresso, 25 de Novembro de 2006